O capítulo 3 do livro de Gênesis narra um dos eventos mais marcantes das Escrituras: a origem do pecado representada na Queda da humanidade e a imediata promessa de redenção representada no protoevangelho. Nesse episódio, a desobediência de Adão e Eva às ordens de Deus resulta em consequências devastadoras não apenas para eles, mas para toda a raça humana. O texto descreve a serpente, que protagoniza o diálogo com Eva, como astuta, mas não revela de forma direta sua verdadeira natureza. Isso levanta questões relevantes: trata-se de um animal comum? Um símbolo? Ou uma manifestação de Satanás?
Este artigo tem como objetivo refletir sobre as estratégias da serpente, a origem do pecado, o juízo divino após a Queda e a importância teológica da promessa messiânica contida nesse mesmo capítulo, conhecida como protoevangelho.
A Natureza Ambígua da Serpente e a Origem do Pecado
O relato de Gênesis apresenta a serpente como o mais sagaz dos animais criados por Deus, mas não há menção explícita a Satanás. A ausência dessa identificação clara no Antigo Testamento levou estudiosos e teólogos cristãos, já nos primeiros séculos, a interpretar a serpente como um instrumento a serviço do Diabo.
No Novo Testamento, essa associação se torna mais evidente. Apocalipse 12.9 e 20.2, por exemplo, identificam a “antiga serpente” como o próprio Satanás. Ainda assim, é importante evitar anacronismos teológicos — isto é, não devemos impor interpretações posteriores ao texto original sem levar em conta como os primeiros leitores o compreendiam.
A Estratégia da Tentação e a Origem do Pecado
O diálogo entre a serpente e Eva revela uma abordagem sutil e manipuladora. A serpente não ordena, mas questiona: “É verdade que Deus disse: ‘Não comam de nenhuma árvore do jardim?’” (Gn 3.1). Ao distorcer a ordem divina, ela instiga dúvida e reflexão. Eva, por sua vez, responde corrigindo parcialmente, mas demonstra insegurança, omitindo detalhes importantes da ordem original.
Esse tipo de abordagem, indutiva e provocativa, é eficaz para desestabilizar a confiança de Eva na bondade de Deus. A serpente, então, nega diretamente as palavras do Senhor, afirmando que o fruto traria conhecimento e autonomia. A ausência de uma resposta firme por parte de Eva, a adesão às palavras da serpente e a consequente desobediência à ordem dada por Deus, abre caminho para o pecado.
A Relevância do Protoevangelho
Mesmo diante da desobediência, Deus oferece ao ser humano uma esperança. No versículo 15 do mesmo capítulo, encontramos o que a tradição chama de protoevangelho — a primeira promessa de redenção nas Escrituras:
“Porém inimizade entre você [a serpente] e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela. Este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar.” (Gn 3.15)
Esse versículo é considerado uma promessa da vitória de Cristo sobre Satanás. A linguagem simbólica do esmagamento da cabeça aponta para a derrota definitiva do mal e a restauração da comunhão entre Deus e o ser humano, por meio do Messias.
A Serpente na Tradição Bíblica e Extra-Bíblica
Ao longo da tradição judaico-cristã, muitos associaram a figura da serpente à origem do pecado e ao caos. O livro apócrifo Sabedoria de Salomão, por exemplo, interpreta a serpente como uma manifestação de Satanás. Pais da Igreja como Justino Mártir e Irineu também afirmaram que Satanás usou a serpente para enganar Eva.
Além disso, relatos antigos, tanto bíblicos quanto de culturas vizinhas, apresentam animais com a capacidade de falar, geralmente em contextos de revelação sobrenatural. O episódio da jumenta de Balaão (Nm 22.28-30) é um exemplo notável disso. Alguns escritos apócrifos ainda sugerem que os animais possuíam fala antes da Queda, mas essa ideia não encontra respaldo direto no texto bíblico canônico.
A Questão da Historicidade
Os primeiros capítulos de Gênesis, incluindo o relato da Queda, são considerados por muitos teólogos conservadores como narrativas históricas, ainda que carregadas de elementos simbólicos. Há quem defenda que se trata de um mito no sentido antropológico, ou seja, um relato com valor formativo e teológico, não necessariamente literal.
Contudo, a estrutura do texto de Gênesis apresenta características típicas de narrativa histórica: uma sequência lógica de eventos, uma preocupação com causas e consequências, e um fio cronológico claro. Isso reforça, para os que creem na historicidade do relato, que estamos diante de eventos reais, ainda que carregados de profundidade simbólica.
Conclusão
A narrativa da Queda não deve ser lida de forma simplista. Ela oferece uma teologia profunda sobre a origem do pecado, a responsabilidade humana e a promessa de redenção. A serpente pode ser interpretada como mais do que um simples animal, representando o poder do mal e a oposição a Deus. Contudo, é necessário ler Gênesis 3 com atenção ao seu contexto e ao progresso da revelação bíblica, evitando aplicar retroativamente conceitos desenvolvidos posteriormente.
A promessa do Messias, presente já nas primeiras páginas da Bíblia, aponta para o plano eterno de Deus de restaurar todas as coisas por meio de Cristo — aquele que esmagou a cabeça da serpente.
LEIA TAMBÉM: