Nos últimos dias, uma declaração do pastor José Wellington Bezerra da Costa, uma das principais lideranças da Assembleia de Deus no Brasil, durante a 47ª Assembleia Geral Ordinária (AGO) da CGADB, realizada em São Paulo, reacendeu uma antiga polêmica: uso da barba é pecado? Segundo ele, a prática seria indevida, e sua justificativa veio de uma interpretação equivocada de Ezequiel 5:1. A fala causou espanto e repercussão nas redes sociais, gerando reflexões, memes e debates sobre o tema, principalmente na internet.
Afinal, usar barba é pecado? Há base bíblica para essa proibição? Neste artigo, vamos tratar o tema com seriedade e à luz das Escrituras, analisando o texto citado e outras passagens bíblicas que abordam o uso da barba. Consideraremos o contexto cultural, a aparência do povo de Deus ao longo da narrativa bíblica — incluindo Jesus e seus discípulos —, além do testemunho histórico da Igreja e o perigo do legalismo que ainda persiste em certos guetos evangélicos.
Crente usar barba: o que a Bíblia realmente diz
A Bíblia não condena o uso de barba, obviamente. Na verdade, em várias passagens do Antigo Testamento, vemos que os homens israelitas usavam barba como algo natural e comum entre o povo de Deus (Lv 19:27; 2Sm 10:4-5; Sl 133:2). Jesus, sendo um judeu do primeiro século, muito provavelmente também usava barba — isso fazia parte da identidade cultural e religiosa masculina do povo judeu.
A confusão sobre o assunto geralmente surge em contextos onde tradições e costumes eclesiásticos associam a aparência (como barba, cabelo ou roupas) com santidade ou mundanismo. Algumas igrejas mais tradicionais ou legalistas, por exemplo, incentivam homens a raspar a barba para manter uma aparência “limpa” ou “santa”, como se a santidade estivesse nisso. No entanto, esse costume não tem base bíblica direta — trata-se de um uso cultural ou denominacional, não de doutrina bíblica, logo, sem qualquer relação direta com santidade.
Lembram dos sepulcros caiados citado em Mateus 23:27-28, onde os “escribas e fariseus” são chamados de “hipócritas! Porque ‘eram’ semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente ‘pareciam’ formosos, mas interiormente ‘estavam’ cheios de ossos de mortos e de toda imundícia?” Se aparência fosse tudo, Jesus, certamente não teria feito essa advertência aos religiosos da sua época.
A questão central é sempre o coração: a intenção, o testemunho cristão e se determinada aparência escandaliza ou edifica. Mas a barba em si, como traço físico, não é pecado.
O uso da barba na Bíblia: sinal de honra e identidade
Na cultura do Antigo Oriente Médio, a barba era um sinal de honra, dignidade e masculinidade. Obviamente, não é por isso que vamos desconsiderar o contexto cultural e agora fazer uma afirmação contrária e associar o uso da barba com santidade, tal qual, o NÃO USO também não é.
A citação de Ezequiel 5.1: má aplicação do texto bíblico
O pastor José Wellington utilizou Ezequiel 5:1 como base para condenar o uso de barba:
“E tu, ó filho do homem, toma uma faca afiada, como navalha de barbeiro, e a farás passar pela cabeça e pela barba.” (Ez 5:1)
Contudo, esse texto não é uma ordenança ética ou moral, mas parte de uma ação simbólica. Deus ordena ao profeta Ezequiel que raspe a cabeça e a barba para ilustrar o julgamento que viria sobre Jerusalém. Essa dramatização visava comunicar o sofrimento, humilhação e dispersão do povo.
Tudo bem que o referido pastor é calvo — sem ofensas, é claro —, mas a ironia salta aos olhos: ele parece ter se apegado apenas à parte do texto bíblico que menciona a barba, ignorando convenientemente o detalhe sobre raspar a cabeça. A pergunta que fica é: será que homens carecas ou de cabeça raspada deveriam ser o novo padrão nas Assembleias de Deus? Ou será que, mais uma vez, só se extrai das Escrituras, fora do seu contexto (obviamente) aquilo que convém às suas tradições?
Enfim, o texto de Ezequiel, não se trata de uma recomendação sobre a estética pessoal, tampouco de uma proibição quanto ao uso de barba. Aplicar esse texto como argumento normativo é um erro hermenêutico sério, pois tira o versículo do seu contexto profético e simbólico.
Eles também usam Gênesis 41:14 para condenar o uso de barba
Alguns usam o relato de Gênesis 41:14 — onde José se barbeia antes de se apresentar ao faraó — como argumento contra a barba:
“Então o faraó mandou chamar José, e o fizeram sair apressadamente da prisão. Ele se barbeou, trocou de roupa e se apresentou ao faraó.” (Gn 41:14)
Mas isso é um erro grave de interpretação por pelo menos três razões:
- José seguiu um costume egípcio, não um mandamento divino – Na cultura egípcia, a barba era sinal de impureza ou rusticidade. José apenas se adequou ao protocolo da corte pagã. Não há nenhuma ordem de Deus nesse ato.
- Trata-se de um relato descritivo, não prescritivo – O texto relata o que José fez, não o que todos devem fazer. Usar esse verso para condenar a barba seria como dizer que fugir para o Egito é prática espiritual porque José e Maria levaram Jesus para lá.
- O contexto é pagão, e o Egito simboliza o mundo sem Deus – Na linguagem bíblica, o Egito é símbolo de escravidão, opressão e afastamento de Deus (Êx 1; Êx 19:4-6). Assim, usar um costume egípcio como base de santidade cristã é totalmente incoerente.
Além disso, essa leitura de Gênesis 41:14 é um exemplo claro de eisegese (colocar no texto algo que queremos que ele diga), e não de exegese (extrair do texto o que ele realmente diz).
Sacerdotes do Antigo Testamento
Os sacerdotes levitas seguiam diversas leis cerimoniais e de pureza, mas o uso da barba era comum entre eles. Em Levítico 19:27, Deus proíbe práticas pagãs envolvendo o corte ritualístico da barba, não o uso da barba em si:
“Não cortem o cabelo dos lados da cabeça nem danifiquem as pontas da barba.” (Lv 19:27)
Ou seja, a barba era parte da aparência normal dos homens judeus. Raspar a barba, em muitos casos, era sinal de luto ou humilhação (2Sm 10:4-5; Is 15:2).
Arão, irmão de Moisés e sumo sacerdote de Israel, é mencionado nas Escrituras como alguém que usava barba, o que reforça a prática comum entre os hebreus antigos. Um dos textos mais belos que alude a isso é o Salmo 133, onde a união fraterna é comparada ao óleo precioso derramado sobre a cabeça de Arão, que desce sobre a sua barba e até a orla das suas vestes: “É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla das suas vestes” (Salmo 133:2).
Esse versículo não apenas confirma que Arão tinha barba, mas também revela seu papel sacerdotal, mostrando que a unção com óleo o consagrava diante de Deus e do povo, sendo a barba um símbolo visível de sua dignidade e função.
Discípulos e o próprio Jesus
No tempo de Jesus, a barba era um sinal normal de masculinidade entre os judeus. Embora o Novo Testamento não descreva com detalhes a aparência física dos discípulos ou de Jesus, tudo indica que Ele, como judeu, também usava barba. Isaías 50:6 traz uma referência profética messiânica que reforça isso:
“Ofereci as costas aos que me feriam e o rosto aos que arrancavam a minha barba…”
Isso sugere que Jesus tinha barba. E se Ele a tinha, como também os sacerdotes e os profetas antes d’Ele, no seu tempo os discípulos, não faz sentido condenar algo que fez parte da aparência de homens piedosos das Escrituras e do próprio Cristo, o Deus Encarnado.
Resumindo, os homens do povo de Deus usavam barba. Arão (sumo sacerdote) usava barba, os profetas usavam barba, discípulos de Jesus e o próprio Cristo, por serem judeus, muito provavelmente eram todos barbudos. Porém, um obreiro ou pastor das Assembleias de Deus usar barba, é visto como algo indígno ou falta de santidade. Isso é sectarismo! A pergunta que fica é: se Jesus viesse hoje, barbudo, possivelmente cabeludo e usando um tipo de “camisola” (traje da época), teria oportunidade de subir em um púlpito das Assembleias de Deus?
O uso da barba sempre foi comum entre o povo de Deus
Como vimos, o uso da barba sempre foi comum entre o povo de Deus: no Antigo Testamento, era sinal de honra e maturidade. Ao longo da história da Igreja, muitos líderes e pensadores cristãos — como os Pais da Igreja, Reformadores e até os Puritanos (sinônimos de santidade) — cultivaram a barba, e ninguém considerava isso pecado. Charles Spurgeon, o príncipe dos pregadores, por exemplo, usava uma barba marcante e chegou até a brincar dizendo que ela era “apostólica”.
A Bíblia e a história deixam claro: o uso da barba sempre foi algo comum entre os homens de Deus. De Arão a Jesus, dos profetas aos apóstolos, passando pelos Pais da Igreja, Reformadores e até Puritanos — todos viveram sua fé sem que a barba fosse empecilho ou escândalo; aliás, eles usavam barba. Mas eis que, em 1911, com a fundação das Assembleias de Deus, surge um novo “mandamento” que não veio do Sinai: usar barba é pecado. Alguém, tomado por um “zelo” mal orientado (ou talvez por algum tipo de autoatribuição papal), decide criar seu próprio ‘decálogo’ evangélico. Nele, as aparências passam a definir a santidade. Não estamos dizendo que a aparência — especialmente a modéstia — não tenha valor no contexto cristão. Mas condenar o uso de barba como algo não cristão já é exagero.
Uso de barba retratado como símbolo de rebeldia ou mundanismo
Seria cômico, se não fosse trágico. A barba, que jamais foi condenada nas Escrituras, passa a ser tratada como símbolo de rebeldia ou mundanismo, numa inversão completa do ensino bíblico. O mais grave, porém, é que esse tipo de tradição humana, imposta como doutrina, reflete o erro que muitos evangélicos costumam criticar no catolicismo romano. Trata-se de colocar costumes e regras humanas acima — ou no mesmo nível — da Palavra de Deus. Um desprezo à autoridade das Escrituras, travestido de santidade.
Enfim, esse costume assembleiano — proibir o uso da barba — não tem base bíblica. Mas de onde ele vem, então? Trata-se de uma prática com raízes em influências culturais do protestantismo norte-americano conservador do início do século XX. Movidos por um “zelo” por uma “santidade visível”, alguns líderes passaram a associar a barba à vaidade, rebeldia ou mundanismo. Assim, criaram proibições estéticas que, com o tempo, se consolidaram como tradições denominacionais — mesmo sem respaldo nas Escrituras.
Felizmente, hoje muitas igrejas já reconhecem que o uso da barba é uma questão meramente estética e cultural, não um pecado. Aos poucos, volta-se ao princípio bíblico da liberdade cristã (Gálatas 5:1), que nos ensina que santidade verdadeira não se mede por aparências externas, mas por um coração transformado pela graça.
O risco do legalismo
É importante destacar que muitas práticas proibidas nas igrejas — como o uso de barba — não são resultado de exegese bíblica, mas sim de tradições humanas ou culturais.
Ao longo do tempo, muitas igrejas passaram a confundir usos e costumes com doutrina bíblica, criando regras que jamais foram estabelecidas pelas Escrituras. Essas normas, muitas vezes fruto de contextos culturais específicos, foram mantidas como uma forma de preservar uma suposta “identidade denominacional” — ainda que à custa da verdade bíblica.
O mais grave, porém, é a falta de humildade para reconhecer o erro. Admitir que por décadas se impôs um jugo sem base na Palavra seria, para alguns líderes, um golpe duro demais contra o próprio orgulho. E esse orgulho — o mesmo que afastou o homem de Deus no Éden — continua sendo um dos maiores obstáculos para que muitas igrejas retornem de fato ao Sola Scriptura: somente a Escritura como autoridade final de fé e prática.
O problema maior surge quando essas tradições passam a ser ensinadas como mandamentos divinos, o que Jesus condenou severamente:
“Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens.” (Mateus 15:9)
Percebe-se que eles confundem facilmente princípios eternos com aplicações temporais:
- Princípio bíblico: modéstia, sobriedade e santidade.
- Aplicação cultural: não usar barba, usar terno e gravata, cabelo curto etc.
O grande problema está em transformar aplicações culturais em mandamentos universais — algo que a Bíblia jamais faz. Isso é legalismo: a tentativa de impor convicções estéticas ou costumes pessoais como se fossem exigências bíblicas. O resultado disso, é um cristianismo raso, centrado na aparência exterior e distante da essência do evangelho.
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